24 novembro 2006

Só pessoas


Na estação em Coimbra andava uma mulher a vender pensos às pessoas na bicha da bilheteira. Uma mulher mal agasalhada para o frio que lá já faz, talvez romena, talvez cigana. Estrangeira, escura e pobre, resumindo. Atrás de mim na bicha estava um homem normal, português, que olhou para ela, mesmo nos olhos, e disse-lhe com a maior frieza: - Não há polícia que vos ponha na rua? E repetiu, muitas vezes, porque ela não percebia nada de português e só dizia que não, a abanar a cabeça. E ele, - Não há polícia que vos ponha na rua? Eu nunca tinha visto nem aquele homem nem aquela mulher. Não conheço histórias, nem contextos, nem enquadramentos. Mas sei que aquele homem é uma pessoa má. Com um fundo mau. Quem olha assim nos olhos de outro ser humano e lhe diz que não tem o direito de viver no mesmo país que ele não pode ser boa pessoa. Por muito bons sentimentos que possa ter nas outras partes da vida dele, aquele homem é mau. Fiquei mesmo triste.

(Margarida Botelho, http://geracaobuga.blogspot.com/)

12 novembro 2006

Um pedaço de terra


Tive um pedaço de terra para regar, um canteiro de barro para atestar, um saco de sementes
para plantar, um ribeiro de água para puxar, mãos abertas, como palmas para divagar.
Tive um pedaço de terra sem água para regar, um canteiro de barro sem terra para atestar, um saco de sementes sem sítio para plantar, um ribeiro de água sem nora para puxar.
Fiquei rico dando tudo sem nada reservar.

(João Afonso, Barco Voador)

11 novembro 2006

Tenho saudades da minha avó


A minha avozinha já sem dentes, com as lunetas, sobre o nariz, contava-me histórias muito lindas, histórias essas que me faziam feliz.
Avozinha, vá lá, só mais uma, conta que eu não faço ó-ó. Conta aquela da fada de espuma, conta alguma, querida avó. E se acaso eu me deixar dormir, amanhã o final quero ouvir.
Para junto de Deus foi a avozinha, partiu um dia, deixou-me só.

(D. Deolinda 82 anos)

07 novembro 2006

Trepar no tempo


Há pessoas que nunca têm a vida facilitada. Falo dos que não nasceram com o rabinho virado para a lua, dos que têm de penar por tudo e por nada. Há quem lhe chame azar, outros preferem alegar uma conspiração cósmica, mas a maior parte de nós, na verdade, não sabe a sorte que tem.
O homem que vemos tem de trepar para chegar ao trabalho. A maior parte dos que lerem este post deverão ser dos que refilam quotidianamente com as filas de trânsito, mas nunca tiveram que pendurar-se em cordas e saltar de casco em casco, qual aldeia de macacos aquáticos, para entrar ou sair do seu confortável escritório com ar condicionado.
Muitos, ao almoço, irão mesmo comer peixe assado, grelhado, cozido ou frito, sem pensar que houve um homem como este que não dormiu, que largou a família, que arriscou a vida, para que isso fosse possível.
Nem sou grande fã de peixe, mas amo o mar e os marinheiros. Principalmente os pequenos, que dependem da sua comunidade, no sentido mais primitivo do termo - no sentido de tribo - para sobreviver. O tempo deles não é o nosso...

03 novembro 2006

A sorte grande e a aproximação




Há alguns privilegiados, dos quais felizmente fazemos parte, que durante três dias por ano agigantam as emoções, as convicções e os sonhos num mar de gente mágico.
Mar de gente, à partida, poderia ser motivo de pânico, já que cada vez menos gostamos das pessoas – embora gostemos cada vez mais de algumas.
Mas ali, quantos mais melhor: “venham mais cinco” (mil), cravem os cravos, comprados às camaradas de chapéu de pano, entre as pernas, dancem e cantem num frenesim que arrepia os poros e o coração. Deitem-se na relva, nas esculturas ou no pó, molhem todos os pêlos, órgãos e tecidos, porque está calor. Descalcem-se e pulem na erva fofa, durmam uma sesta, debatam, gritem, chorem e riam, petisquem... Aprendam!
Há três dias por ano em que nos sai a sorte grande...